Em uma pequena cidade litorânea do Paraná, um crime hediondo contra uma criança desencadeou uma das maiores polêmicas da justiça brasileira. O desaparecimento e assassinato de Evandro Ramos Caetano, em 1992, levou a acusações de rituais satânicos, torturas policiais e condenações injustas. Conhecido como “As Bruxas de Guaratuba”, o caso expôs falhas graves no sistema judiciário, preconceitos religiosos e o impacto do sensacionalismo midiático. Mais de três décadas depois, em 2025, decisões judiciais definitivas confirmaram a inocência dos acusados, mas o verdadeiro culpado pelo crime permanece desconhecido.
O Desaparecimento que Abalou Guaratuba
Tudo começou em 6 de abril de 1992, na pacata Guaratuba, uma cidade de veraneio no litoral paranaense. Evandro Ramos Caetano, um menino de apenas seis anos, saiu de casa para ir à escola, um trajeto curto de cerca de 150 metros. Ele nunca chegou ao destino. A família, humilde e composta por pais e irmãos, iniciou buscas imediatas, mas sem sucesso. O pai, Ademir Caetano, era funcionário público, e a mãe dedicava-se aos cuidados do lar.
Cinco dias após o sumiço, em 11 de abril, o corpo mutilado de Evandro foi encontrado por lenhadores em um matagal próximo à cidade. O cadáver apresentava marcas brutais de violência: sem mãos, pés, cabelos, vísceras e órgãos genitais, com cortes profundos e indícios de estrangulamento. Próximo ao local, foram achadas as chaves da casa da família e os chinelos do menino. A autópsia inicial apontou para uma morte por asfixia, mas as mutilações sugeriam algo mais sinistro.
O caso não era isolado. Dois meses antes, em 15 de fevereiro de 1992, outra criança, Leandro Bossi, de nove anos, havia desaparecido na mesma região. Seu corpo nunca foi encontrado na época, mas ossadas descobertas anos depois, em 2023, foram identificadas como dele por meio de exames de DNA. As similaridades entre os casos alimentaram teorias de uma rede de crimes, mas as investigações iniciais ignoraram conexões potenciais.
A cidade entrou em pânico. Boatos de sequestros para rituais de magia negra ou tráfico de órgãos se espalharam rapidamente, criando um clima de histeria coletiva. A população exigia respostas, e a pressão sobre as autoridades cresceu.
A Investigação Polêmica e as Acusações de Ritual Satânico
A Polícia Civil do Paraná assumiu o caso inicialmente, com o Grupo Tigre, uma unidade de elite, liderando as buscas. Por meses, não houve avanços significativos. Um primo de Evandro, Diógenes Caetano, ex-policial, organizou buscas paralelas e criticou publicamente o prefeito local, Aldo Abagge, por supostamente obstruir a imprensa.
Em julho de 1992, a investigação passou para a Polícia Militar, com o Grupo Águia. Foi nessa fase que sete pessoas foram presas e confessaram o crime. Os acusados incluíam Celina Cordeiro Abagge, esposa do prefeito, e sua filha Beatriz Abagge, além de Osvaldo Marcineiro (pai-de-santo de umbanda), Vicente de Paula Ferreira (ajudante de Marcineiro), Davi dos Santos Soares (artesão), Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli dos Santos.
As confissões descreviam um ritual macabro de magia negra, supostamente encomendado pelas Abagge para “proteger” o prefeito de uma maldição. Evandro teria sido sequestrado em um carro, levado a uma propriedade rural e sacrificado em um terreiro de umbanda. O grupo foi rotulado pela imprensa como “As Bruxas de Guaratuba”, um apelido que reforçava preconceitos contra religiões de matriz africana, distorcendo práticas de umbanda e candomblé como satanismo.
As confissões foram divulgadas em áudios pela mídia, gerando repercussão nacional. Programas de TV e jornais sensacionalizaram a história, alimentando o “pânico satânico” similar a ondas de histeria nos Estados Unidos na década de 1980. Diógenes Caetano ganhou notoriedade como o “caçador de bruxas”, impulsionando a narrativa de uma seita maligna.
No entanto, revelações posteriores mostraram que as confissões foram obtidas sob tortura: espancamentos, ameaças e interrogatórios coercitivos. Áudios completos demonstraram edições que omitiam os abusos, invalidando as provas.
Os Julgamentos Maratonas e as Condenações Injustas
O caso chegou aos tribunais em 1998, no que se tornou o júri mais longo da história brasileira, com 34 dias de duração. Celina e Beatriz Abagge foram absolvidas por falta de provas concretas, como a ausência de identificação definitiva do corpo por DNA na época. No entanto, Osvaldo Marcineiro, Vicente Ferreira e Davi Soares foram condenados a penas pesadas.
Novos julgamentos ocorreram em 2004 e 2011. Beatriz Abagge recebeu uma sentença de 21 anos em 2011, cumprindo parte em regime semiaberto. Vicente Ferreira morreu de câncer na prisão em 2011, e Osvaldo Marcineiro faleceu anos depois. Celina Abagge morreu em 2007, sem ver o desfecho.
As condenações foram baseadas em confissões questionáveis e testemunhos inconsistentes, ignorando hipóteses alternativas, como crimes sexuais ou acidentais. O foco em rituais religiosos refletia preconceitos institucionais.
As Reviravoltas e a Luta pela Justiça
Em 2018, uma investigação jornalística independente revisitou o caso, acessando milhares de páginas de autos judiciais. Ela revelou as torturas e as manipulações nas confissões, expondo o que foi chamado de “o maior erro judiciário do Paraná”. Isso levou a uma revisão criminal.
Em novembro de 2023, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná anulou todas as condenações restantes. Beatriz Abagge, Davi Soares, Osvaldo Marcineiro (postumamente) e Vicente Ferreira foram declarados inocentes, com base em provas de tortura e ausência de evidências materiais. A decisão foi considerada irrecorrível no âmbito estadual.
O Ministério Público recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas em setembro de 2025, a 6ª Turma do STJ manteve a anulação das condenações. Os ministros rejeitaram o recurso especial, confirmando a absolvição dos quatro acusados sobreviventes. Além disso, o STJ emitiu um alerta contra abusos em investigações policiais, recomendando estudos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para prevenir erros semelhantes. A decisão destacou a necessidade de reformas para evitar violações de direitos humanos.
Paralelamente, a identificação das ossadas de Leandro Bossi em 2023 reabriu investigações sobre os dois casos. Autoridades do Paraná, incluindo o secretário de Segurança, anunciaram o uso de novas tecnologias forenses para buscar conexões, mas até dezembro de 2025, nenhum culpado foi identificado.
Legado e Lições de um Caso Inacabado
O Caso Evandro deixou cicatrizes profundas. As famílias das vítimas, como os Caetano e os Bossi, vivem com o trauma de perdas sem resolução. Os acusados inocentados carregam estigmas sociais vitalícios, com vidas destruídas por anos de prisão injusta.
O episódio ilustra falhas sistêmicas: a pressão por resultados rápidos leva a torturas e confissões falsas; o preconceito contra religiões afro-brasileiras distorce investigações; e o sensacionalismo midiático amplifica injustiças. Ele ecoa lições de pensadores como Cesare Beccaria, que criticava punições baseadas em suposições.
Mais de 30 anos após o crime, o Caso Evandro serve como alerta para a sociedade brasileira. Enquanto os verdadeiros responsáveis permanecem impunes, a justiça continua em busca de redenção, enfatizando a importância de investigações imparciais e respeito aos direitos humanos. Guaratuba, outrora marcada pelo horror, agora simboliza a luta contra erros judiciários.







